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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Entrevista Ana Mae Barbosa



Ana Mae Barbosa é a principal referência no Brasil para o ensino da arte nas escolas. Professora aposentada da USP, acredita que a arte estimula a construção e a cognição das crianças e adolescentes, ajudando a desenvolver outras áreas de conhecimento. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Ana Mae Barbosa falou sobre a importância do ensino da arte nas escolas e sobre as dificuldades de implantar essas idéias.



Acabou caindo na “vala comum” da época e foi estudar Direito. Para pagar os estudos, teve que partir para o ensino. As únicas profissões aceitáveis eram ser professora ou casar, disse. Odiava aquilo. Odiava o ambiente repressor das salas de aula. Por ironia, foi em um cursinho para concurso de professora primária que conheceu Paulo Freire. Na primeira aula, o tema da redação era por que eu quero ser professora?. Ana Mae escreveu o que sentia, que odiava educação. No entanto, apenas quatro horas de conversa com o mestre foram suficientes para destruir todos os seus preconceitos. Só então compreendi que educação não era aquilo que eu tive. Eu passei por um processo de abafamento e moldagem. Mas ele me ensinou que a Educação poderia ser libertadora.

E Ana Mae transferiu aquele sentimento o para a arte-educação, na Escolinha de Artes de Recife. Mudou-se para São Paulo para fugir da ditadura militar. Foi para os Estados Unidos, fazer mestrado e voltou como a primeira doutora brasileira em arte-educação e comandou as pesquisas sobre o tema na Escola de Comunicações e Artes da USP.

Criadora da teoria da abordagem triangular, a arte-educadora entende a necessidade da existência de educadores atualizados, artistas e acesso aos trabalhos contemporâneos para que os estudantes consigam atingir o máximo do desenvolvimento do conhecimento. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Ana Mae Barbosa falou sobre a importância do ensino da arte nas escolas e sobre as dificuldades de implantar essas idéias.

CARTA MAIOR – Existe um debate hoje sobre a obrigatoriedade da existência de artistas práticos especialistas nas escolas. Esse seria um grande passo para a Arte-Educação?

ANA MAE BARBOSA- O artista não necessariamente é um bom pr
ofessor. Existe um estudo que defende ter ao lado de um artista um arte-educador trabalhando junto. Um profissional que conheça as fases de desenvolvimento da criança. Um arte-educador tem o preparo, conhece as fases de desenvolvimento e construção plástica da criança. É necessário que entenda as fases de recepção da obra de arte; entenda como articula o desenvolvimento social e cognitivo da criança. Por isso, eu defendo a presença dos dois profissionais ao lado das crianças. Os melhores projetos de arte-educação do mundo atuam dessa forma. Teve um projeto fantástico na Bahia, chamado Quietude da Terra. Uma curadora canadense veio ao Brasil e convidou vários artistas internacionais importantes. Eles trabalharam juntos com arte-educadores juntamente com crianças de rua de Salvador e atingiram um resultado excelente.



CM - Mas isso é factível para a realidade estrutural da educação?

AMB - Eu estou cansada dessa conversa de que custa caro. Custa caro colocar os menores na Febem. Um país que gasta mais dinheiro com prisão do que com educação tem que mudar. É factível. Acontece que, em países como a Inglaterra, Portugal e Canadá eles estão atentos a isso e defendem a Arte na Educação. Eles fazem o trabalho em conjunto do professor com o artista. É preciso aliar esse trabalho. O contato do artista é importante para provocar e trazer os debates contemporâneos para as salas de aula, abrindo os olhos para diferentes codificações.

Eu organizei recentemente um livro Arte-Educação Contemporânea Editora Cortês que tem um artigo que trata de um colégio no Canadá com artistas e arte-educadores. Já temos os arte-educadores nas escolas, agora é preciso criar projetos para que coloquemos artistas, das diversas áreas, nas instituições de ensino. O grande problema é que no Canadá eles têm um grande respeito à multiculturalidade. Eles fazem questão de mostrar os diversos códigos, como o dos africanos, o indígena. Isso é magnífico. No livro, eles colocaram também umas fotos que mostram a variedade de expressões.

CM - Mas a falta de investimentos no Brasil reflete-se apenas na ausência dos artistas dentro das escolas ou estende-se também à questão da capacitação?


AMB - Não é capacitação, o problema é a atualização. Qualquer professor precisa estar atualizado. Eu não concebo um professor que não procure, em um ano inteiro, um curso, uma conferência, ao menos para trocar idéias. A atualização deve, então, ser permanente e não algo esporádico como esta tal capacitação!

Há uma coisa meio perversa nos que chamam isso de capacitação. O professor é capaz. Atualização significa que o professor é capaz, está formado, e se ele não se atualiza constantemente será apenas um repetidor de formas e apostilas que nenhuma capacitação vai resolver. Eu acho que o investimento primeiro deve ser destinado à atualização constante. Uma coisa perversa que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo fez foi achar que o que eles chamam de capacitação fosse feito apenas nas escolas. Eles pensam que os professores que saem para cursos tendem a voltar decepcionados para a escola, por não conseguirem depois programar aquilo que aprenderam. Então os professores ficariam desmotivados. Essa não é a minha experiência. Em todos os casos que conheço, os professores vão e voltam com um empenho tremendo.



CM – Então, explique para nós e para o leitor: por que é importante ter isso tudo na escola?

AMB - Para trabalhar construção e cognição. Na construção da Arte utilizamos todos os processos mentais envolvidos na cognição. Existem pesquisas que apontam que a Arte desenvolve a capacidade cognitiva da criança e do adolescente de maneira que ele possa ser melhor aluno em outras disciplinas. A música desenvolve diversos processos cognitivos, comparando, organizando, selecionando. Em Arte, opera-se com todos os processos da atividade de conhecer. Não só com os níveis racionais, mas com os afetivos e emocionais. As outras áreas também não afastam isso, mas a Arte salienta ou dá mais espaço. Para desenvolver a criatividade em ciência, a criança tem que ter certo QI racional. Para desenvolver através da Arte, a necessidade de QI é muito menor. Significa que ele procura outros caminhos cognitivos. Eu acho que, em primeiro lugar, a função da Arte na Educação é essa, desenvolver as diferentes inteligências.

Isso fica patente com o exemplo dos Estados Unidos, onde existe um teste equivalente ao Enem - aliás, o Enem é cópia do deles. Eles pesquisaram quais os currículos dos alunos que mais se destacaram no teste, nos anos 90. Todos eles haviam tido no mínimo dois cursos de artes. Lembre-se de que, lá, eles escolhem o currículo. Só aqui que currículo é igual à receita médica. Mas isso não era suficiente. Além disso, é preciso desenvolver o país culturalmente. Arte é uma fatia enorme da produção humana. E com uma vantagem imensa de rever cada época. Diferente do fato, o objeto arte permanece para ser revisto, relido ou reconcebido. Isso é essencial: operar no mundo com conhecimento.

CM - E quais são as políticas públicas que existem para garantir isso?


AMB - Não há políticas públicas. Uma das minhas grandes decepções com o atual Ministério da Educação é o silêncio absoluto sobre Arte-Educação, sobre a função da Arte. E, no ministério anterior, só se pensou em normatizar, parâmetros mínimos. O que é a mesma coisa. Não serve para nada, não funciona.


CM - Por que não funciona?


AMB - Se formos analisar o que aconteceu em outros países, percebe-se que eles voltaram para trás. Não deu certo na Espanha, e eles importaram um espanhol para desenhar o currículo que temos hoje. No lado que conhecemos e que chamamos de Ocidente, o melhor exemplo é o do Canadá. Eles se recusaram completamente a ter um currículo nacional. É puro desejo de controle das instituições. O interessante é que, quando surgiu essa reforma, eu me posicionei contra, fizemos todo um movimento. Aí eu fui até a Argentina e lá tinha um movimen

to imenso. Pois lá também estava acontecendo a mesma coisa. E o espanhol que ela

borou o currículo nada mais fez do que oferecer desenho para colorir: ele tinha o contorno de tudo e chamava as universidades hegemônicas para colorir em cada país. Aqui eles escolheram a Universidade de São Paulo. No Chile, foi a Católica. Na Argentina, foi a de Buenos Aires. Mas lá tinha um grande problema. A Universidade de Buenos Aires não tinha cursos de Educação. Estava um movimento muito forte. Foi até bom. Eu gritav

a contra e eles aplaudiam. Criei alguns inimigos. Mas, no fim, aconteceu o que prevíamos, não deu certo. Depois sobrou um vácuo...



Créditos:

Foto 1 - Oficina de Pintura - Professor Jabim

Foto 2 - Oficina de Arte - Professora Luciana



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